Cinco Segundos - Capítulo II: O Salto de Quatro Dias
- Imagem estranha! Onde arranjar imagem estranha?
- Consegues passar isso para uma holo ou não, chinês de pacotilha? – o homem pequeno e de pele enrugada pareceu intimidado pelo tom das palavras.
- Ok, ok! Sempre pressa. Vive depressa, morre depressa. Vida curta. – passou por uma anacrónica rede mosquiteira e desapareceu da sua vista levando os Hu-Yang nas mãos trémulas.
"Mesmo vivendo devagar a minha vida será curta", pensou. Estranhou a luz intensa lá fora. Aproximou-se da porta para logo recuar: um hiato de luz, céu limpo, perigo mortal! As sirenes tocavam alto e as pessoas tentavam escapar às radiações venenosas. Nem sempre o tecto de nuvens protegia contra a luz directa do sol... Entraram várias pessoas na pequena loja, fazendo o oscilador que imitava uma velha campainha manual soar continuamente. Tentou evitar os olhares refugiando-se na contemplação da tralha que cobria as paredes da loja. Por vezes os grabbers andavam disfarçados, com implantes de memória a substituírem o d'head. Não era tão eficaz, mas podia ser igualmente perigoso.
O relógio era um velho Seiko de parede, de mostrador holográfico, e não possuía nada de estranho, mas o seu peculiar sentido do pormenor entregou-lhe uma sensação de anormalidade. O que havia ali de tão errado? Eram três da tarde mais vinte e três minutos, do dia 7 de Setembro de... Olhou com mais atenção.
- Ok, ter aqui holo e óculos seus. Pagar 5 unidades.
Tirou o dinheiro do bolso e entregou-o ao chinês. Para onde tinham fugido quatro dias da sua vida?
Examinou outra vez a imagem holográfica que tinha na mão. A sua única pista, se não contasse com a roupa que tinha vestida quando do seu despertar atribulado. Um rosto brutal distorcido por uma qualquer estranha loucura. O ruído que veio da entrada fê-lo levantar-se do degrau em que estivera sentado. Quando avistou a figura esquálida e estranha do Massa Lenta ficou descansado. Era ele a quem esperava.
- Olha quem é! Há quanto tempo não te punha a vista em cima, meu pulha? Desde aquela vez em que te safei dos grabbers nunca mais apareceste.
- Muito que fazer, Massa Lenta, tenho tido muito que fazer.
- Continuas a negociar em tudo o que apareça?
- Existe outra forma de negócio?
- És um vigarista. – tirou uma chave de plasma codificado e introduziu-a na substância gelatinosa que era o canhão da fechadura. Quando os fluxos magnéticos se estabeleceram da forma correcta a porta abriu-se sem ruído. – Entra, não fiques à porta. Nunca se sabe quando pode aparecer um grabber.
A casa estava exactamente na mesma, tanto quanto ele se recordava. O Massa Lenta pousou o embrulho que trazia numa mesa baixa e depois centrou a atenção nele.
- Diz lá.
- Duas coisas: primeiro, quem é este homem, - mostrou-lhe a holografia – segundo, quero ver passar o filme outra vez.
- Rememorização total?
- Sim, dos últimos seis dias.
- Ela era assim tão boa?
- Massa Lenta, não sei como é que ainda conservas os dentes todos.
A sensação de não fazer parte do seu corpo tornou-se mais intensa e transformou-se na única coisa que sentia. A oficina clandestina do Massa Lenta já não aparecia na imagem que o seu cérebro lia dos olhos. Um véu luminoso ocupou-lhe toda a visão por um curto instante, até que pequenos bichinhos começaram a devorá-lo e se transformaram em imagens passadas. Saía do Olho de Lince, o bar de segunda de Sakky, e ouvia os nomes que Vinnie Smolensk lhe chamava. Continuou pela rua saturada de gente, inalando os odores conhecidos e os desconhecidos, empurrando e sendo empurrado, com todos os sentidos alerta para a possível presença de grabbers entre a multidão. Demorou bastante tempo até chegar à tenda do Willie Ashtray, onde costumava almoçar por vezes.
- Vodka, Willie. Duas garrafas. – a resposta apareceu em imagens no pequeno monitor que Willie possuía implantado na testa. Um trabalhinho com ácido na garganta de Willie fizera-o perder a voz. Águas passadas, velhas cicatrizes.
- O quê? – Willie repetiu as imagens – Já não tenho crédito? E porquê, velho nojento?
As imagens seguintes não eram recomendáveis. Pagou-lhe em dinheiro, do pouco que tinha. Os negócios não lhe corriam muito bem ultimamente.
O átrio do prédio onde morava estava sujo como sempre. Chamou o elevador e esperou, olhando pela enésima vez a parede esburacada.
- Boa tarde.
- Boa tarde, – respondeu. Não era hábito um estranho cumprimentá-lo. Entrou no elevador: – Vigésimo.
Quase caiu quando o elevador de alta velocidade estacou repentinamente entre o 12º e o 13º piso. Admirado, dirigiu-se ao painel de comando.
- O que é que se passa? – um curto impulso de luz bateu-lhe nos olhos vindo do olho electrónico de vigilância.
- Pára! Volta atrás cinco segundos. Passa devagar.
A sua voz tornou-se grave e arrastada à medida que repetia a pergunta.
- Mais lento agora!
Quando acabou de formular a pergunta uma sucessão muito rápida de impulsos luminosos penetrou-lhe o cérebro. O que antes parecera uma simples cintilação era na verdade uma mensagem elaborada.
- Hipnotizaram-me! – deixou adormecer a parte de si que se sabia espectador e dispôs-se a ver o resto. – Normal!
Chegou ao seu quarto-apartamento e passou uma tarde entediante até à chegada de Vinnie. Sentiu-se adormecer depois de terem feito amor e viu-se desligado quando a campainha da porta tocou três vezes, dormia ele a sono solto. Dois pequenos toques e um terceiro mais longo.
Estava molhado, a rua estava molhada! Que raio fazia ali depois de ter adormecido enroscado em Vinnie Smolensk?
- Pára, Massa Lenta. É escusado. Alguém me roubou quatro dias da minha vida!
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